O pai do Anarquismo defendia a propriedade privada

Os anarquistas deveriam conhecer melhor as ideias de Proudhon sobre a propriedade.

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Escrevo este pequeno artigo para atacar o mito que vem sendo propalado há mais de um século e meio por defensores e opositores igualmente ignorantes ou desonestos: que a anarquia se sustenta sobre a proposição de que toda propriedade é roubo. Não pretendo refutar Proudhon nem confirmá-lo, apenas tratar deste mito específico.

Nada poderia ser mais longe da verdade, como vou demonstrar cortando o mal pela raiz. Não são somente liberais, socialistas e conservadores que contam em seu meio uma maioria de pessoas que nunca buscaram saber o mínimo sobre aquilo que dizem defender: os anarquistas, por alguma razão desconhecida, me parecem ser assolados por uma “maior maioria” desses confusos partidários.

Entre em alguma discussão de anarquistas na internet e creio ser muito difícil encontrar algo além de uma visão hermética e caricatural do movimento.

Mas estou a divagar. Sabemos que a anarquia tem uma longa história desde que seu termo foi apropriado pelo economista Pedro-Josefo Proudhon, que se declarava socialista, mas de uma tradição não-coletivista, anti-comunista, ou seja, não acreditava que o coletivo deve ter a prioridade sobre as necessidades e vontades do indivíduo. Seu socialismo era direcionado à diminuição radical, na impossibilidade do desaparecimento, das disparidades de poder entre os membros da sociedade.

Sua principal bronca era, obviamente, contra o Estado: “Aquele que botar as mão sobre mim, para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo.” Les Conféssions d’un Révolutionnaire (1849) pg 15. Eu também, Pruda, eu também.

Essa é a fonte principal de injustiças, segundo Proudhon: “Ser governado é ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, identificado, doutrinado, aconselhado, controlado, avaliado, pesado, censurado, comandado por outros que não têm nem o título nem a ciência, nem a virtude…” – Idée générale de la révolution au XIXème siècle (1851) pg 341.

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Mas, como todo bom anarquista, o Estado não era para ele a única fonte de injustiças. A instituição “propriedade” (propriété) era um dos alicerces das disparidades de poder: “Propriedade é roubo”. Espere um momento, roubo pressupõe a existência de propriedade. Pois é, Pruda era um polemista, e apesar de ser o culpado por essa patifaria semântica, ele não poderia imaginar que século e meio depois um exército de zumbis repetiria esse mantra sem pensar um segundo no seu significado subjacente.

Proudhon tinha aprendido e adotado a dialética, o diálogo entre contradições aparentes de Hegel, através de Marx, em longas conversas noturnas em Paris (segundo o próprio Marx), antes do alemão ser expulso da cidade-luz em 1843 por criticar o governo alemão. Além de se inspirar em Proudhon, assim como em seus conterrâneos socialistas, e chamá-los depois de socialistas utópicos, Marx considerava especialmente a dialética de Proudhon um exercício incompetente e infrutífero.

Enfim, na sua obra seminal O que é a Propriedade, de 1840, Proudhon reinterpretou uma frase originalmente empregada por Brissot de Warville em 1780, o qual havia escrito: “Car cette propriété exclusive est un crime véritable dans la nature (Porque essa propriedade exclusiva é um verdadeiro crime na natureza.“) – Recherches philosophiques sur le droit de propriété consideré dans la nature (1780) pg 42. Brissot acreditava que a propriedade era um direito passageiro, justificado temporariamente pelas necessidades fisiológicas das pessoas. Numa analogia, um riacho seria propriedade tanto do lobo quanto do cordeiro. Por isso que os selvagens da América ofereciam suas mulheres aos franceses, eles se serviam das mulheres sem ciúmes, sem achar que eram sua propriedade. Pois é, Brissot era bastante confuso e machista, considerava as mulheres um recurso a ser usado por homens quando o desejo assim o determinasse.

Divago novamente… Proudhon escreveu em 1840: “la propriété, c’est le vol“. Explicou, ecoando Maquiavel, que a maioria dos títulos de propriedade da sua época (o sistema) se baseavam em algum roubo original antepassado (origem do sistema), o germe do conceito de “acumulação primitiva” de capital mais tarde compartilhado por Marx. O Estado é a expressão moderna do roubo generalizado perpretado através do tempo por invasores que expulsaram ou dominaram os camponeses, criando as classes de dominadores e de dominados. Os nobres e os servos, os mestres e os escravos, a divisão social feudal europeia.

Seja porque as terras roubadas e a riqueza dos seus donos exploradores passaram por novas mãos, seja pela penúria que essa concentração causava em quem não possui meios de subsistência, a propriedade (que existe atualmente) é (largamente baseada em) roubo, na hipérbole proudhoniana. Mas principalmente porque Proudhon segue a teoria do valor trabalho à risca, como Marx, e vê no lucro, espoliação.

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Existem diversas manifestações deste roubo, cujo conjunto de leis subjacentes Proudhon chama de droit d’aubaine: o lucro que toma parte do trabalho do operário; o aluguel que usurpa o direito de ocupação; os juros que impedem a participação no investimento. Proudhon jogou nesse mesmo balaio os privilégios políticos estilo comissões, pensões estatais e molhadas de mão.

Proudhon conclui este livro propondo diversas justificativas pelas quais “la propriété est impossible“. Existem várias versões digitais deste livro em português onde somente esta parte é citada, começando por “A propriedade é impossível porque é homicida.” Muitos anarquistas coletivistas conhecem apenas a parte que lhes interessa. As justificativas desta impossibilidade foram escritas para o leitor não esquecer que está diante de um inimigo feroz “da propriedade”: o conjunto histórico das injustiças que levaram à concentração de poder e de capital, que empobrece, esfomeia, brutaliza, e mata aqueles que não possuem propriedade.

Até aí estamos diante do Proudhon prestidigitador, escolhendo apenas as formulações que cobrem o conceito de propriedade com um véu de magia negra. Felizmente era ele um polemista de propensão honesta, seja por natureza ou por necessidade, como veremos nas declarações posteriores. Ao enviar o seu recém publicado livro à academia de Besançon, circunscrição acadêmica à qual pertencia como pensionário, junto a uma carta explicando as razões de sua investigação sobre a natureza da propriedade, Proudhon foi rechaçado duramente pelos seus colegas da região da Franche-Comté.

No prefácio da segunda edição do mesmo livro, em 1849, o filósofo explica como além do opróbio, ainda arriscava ser preso pelo procurador do rei, e foi salvo apenas graças a um famoso socialista chamado Auguste Blanqui, cuja carta de 1841 Proudhon transcreveu ipsis litteris. Blanqui faz uma defesa apaixonada das intenções e da sapiência demonstradas por Proudhon, porém pede encarecidamente que ele esqueça o tal papo de fim da propriedade; é preciso ser reformista e tudo o mais.

Pierre-Joseph agradece de coração a ajuda e a carta, e desabafa: “Tanta controvérsia me cansa e me aborrece. A inteligência despendida nos combates de palavra é como aquela empregada na guerra: é inteligência perdida. O sr. Blanqui reconhece que existe dentro da propriedade uma multitude de abusos, odiosos abusos; da minha parte, chamo exclusivamente propriedade a soma desses abusos” (grifo meu, original abaixo).

Não é difícil imaginar a fadiga provocada por incessantes explicações sobre o que realmente ele quis dizer com “propriedade é roubo”, ao ponto de um socialista reconhecido (que mais tarde seria eleito, in absentia pois prisioneiro, a líder da Comuna de Paris) pedir-lhe comedimento e moderação!

No mesmo ano deste prefácio, Proudhon confessa ainda em outro livro que sua hipérbole era justificada como protesto:

Nos meus primeiros livros, atacando de frente a ordem estabelecida, eu dizia, por exemplo: A propriedade, é o roubo! Tratava-se de protestar, de por assim dizer colocar em relevo a deficiência de nossas instituições. Era a única coisa a me ocupar no momento. Além disso, no livro onde eu demonstrava, por A mais B, essa espantosa proposição, também tinha o cuidado de protestar contra qualquer conclusão comunista. No livro Sistema de Contradições Econômicas, após ter lembrado e confirmado minha primeira definição, adicionei uma outra completamente contrária, porém fundada sobre considerações de outra ordem, que não podiam nem destruir a primeira argumentação nem ser destruída por ela: A propriedade, é a liberdade. A propriedade, é o roubo; a propriedade, é a liberdade: essas duas proposições são igualmente demonstradas e subsistem uma ao lado da outra no [livro] Sistema de Contradições.”

Na Declaração de fundação de seu Banque du Peuple, tentativa bem intencionada mas fracassada de instituir seu mutalismo de crédito não remunerado, Proudhon explicou que apesar de ser contra nunca quis proibir a cobrança de juros e de aluguel, desde que, claro está, fossem uma manifestação da propriedade justamente adquirida:

Protesto, que fazendo a crítica da propriedade, ou por melhor dizer do conjunto de instituições das quais a propriedade é o pivô, nunca quis atacar os direitos individuais reconhecidos por leis anteriores, nem contestar a legitimidade das posses adquiridas, nem provocar uma repartição arbitrária dos bens, nem levantar obstáculos à livre e regular aquisição, por venda e troca, das propriedades; nem mesmo interditar ou eliminar, por decreto soberano, o arrendamento [aluguel de terras produtivas] e os juros sobre o capital.

Eu creio que todas essas manifestações da atividade humana devem continuar a ser livres e facultativas a todos; eu não admito por elas outras modificações, restrições e supressões, que aquelas que resultam naturalmente e necessariamente da universalização do princípio de reciprocidade, e da lei de síntese que eu proponho.

Alguns anos mais velho, rugas a mais na testa, no seu livro A Teoria da Propriedade, de 1866, podemos ler formulações bastante reformadoras e “lockeanas“, do tipo:

Para que o cidadão seja qualquer coisa dentro do Estado, não basta que seja livre em sua pessoa; é preciso que sua personalidade se apoie, como a do Estado, sobre uma porção de matéria que ele possui em toda soberania, como o Estado possui a soberania do domínio público. Esta condição é preenchida pela propriedade. Servir de contra-peso ao poder público, equilibrar com o Estado, por esse meio assegurar a liberdade individual: essa é então, no sistema político, a função principal da propriedade. Elimine esta função ou, o que dá no mesmo, retire da propriedade o caráter absolutista na qual a reconhecemos e que a distingue; imponha a ela condições, declare-a intransferível e indivisível: imediatamente ela perde sua força; ela não pesa mais nada; ela torna a ser um simples benefício autorizado; uma dependência do governo, sem ação contra ele.

Do mesmo livro, uma pérola anti-comunista: “Do princípio que a propriedade, irreverenciosa quanto ao príncipe, rebelde à autoridade, anárquica enfim, é a única força que poderia servir de contra-peso ao Estado, provem este corolário: que a propriedade, absolutismo dentro de um outro absolutismo, é ainda para o Estado um elemento de divisão. O poder do Estado é um poder de concentração; dê-lhe a vazão, e toda a individualidade logo desaparecerá, absorvida na coletividade; a sociedade tomba no comunismo; a propriedade, ao contrário, é um poder de descentralização, porque ela mesma é absoluta, ela é anti-despótica, anti-unitária; nela está o pricípio de toda federação: e é por isso que a propriedade, autocrática por essência, transportada a uma sociedade política, ela se torna republicana.

Acho que há bastantes exemplos que demonstram o jogo de luzes de Proudhon; enquanto atrai o olhar do espectador para um fato importante, com a outra mão esconde o trunfo para poder mostrar na hora que for conveniente. Certamente socialistas coletivistas e comunistas poderão atacar este presente artigo e encadear uma barreira de citações anti-propriedade do filósofo. Mas será um exercício vão: já desmascaramos nosso “Proupriedhon“. Não foi à toa que Jean Jaurés, unificador dos movimentos socialistas franceses, em um discurso na Assembleia Nacional em 1910, afirmou que Proudhon tinha sido “um grande liberal e um grande socialista”.

Termino com este extrato do livro De la justice dans la Révolution et dans l’Église (1858) pg 303, por conter mais uma defesa à propriedade privada, e um ataque canhoto a Bastiat, com quem debateu sobre o assunto da moralidade da cobrança de juros:

A dificuldade do problema consiste em que a propriedade aparece primeiro como um fato tão necessário à existência do indivíduo quanto da vida social, e que se demonstra em seguida, por meio de uma análise rigorosa, que este fato, indispensável, fecundo, emancipador, salvador, é da mesma natureza, no fundo, que aquele que a consciência universal condena sob o nome de roubo.

Desta contradição exposta por mim à luz do dia, que ninguém queria jamais expor em praça pública, concluíram que eu queria destruir a propriedade. Destruir uma concepção do espírito, uma força econômica, destruir a instituição que esta força e esta concepção fomentam, é tão absurdo quanto destruir a matéria. […]

O que eu buscava, em 1840, definindo a propriedade, o que eu quero hoje, não é a destruição, eu o disse à exaustão: teria sido cair com Rousseau, Platão, Louis Blanc ele mesmo e todos os adversários da propriedade, no comunismo, contra o qual eu protesto de todas as minhas forças; o que eu exijo para a propriedade é uma balança.

Não é à toa que o espírito dos povos armou a Justiça com este instrumento de precisão. A Justiça, com efeito, aplicada à economia, não é outra coisa que uma balança perpétua; ou, para me exprimir de uma maneira ainda mais exata, a Justiça, no que concerne a repartição dos bens, não é outra coisa que a obrigação imposta a todo cidadão e à todo Estado, nas suas relações de interesses, de se conformar à lei de equilíbrio que se manifesta em toda a economia, e cuja violação, acidental ou voluntária, é o princípio da miséria.

Os economistas fazem supor que não é prerrogativa da razão humana intervir na determinação deste equilíbrio, que deve-se deixar os braços da balança oscilarem sem ajuda, e seguí-los passo a passo nas nossas operações. Eu sustento que é lá uma ideia absurda; que tanto valeria oferecer uma reprimenda à Convenção Nacional de ter reformado os pesos e medidas, pela razão que, não conhecendo o metro usado por Deus para organizar o mundo, o mais seguro seria deixar cada um escolher uma medida arbitrária. Liberdade de pesos e medidas! é a consequência do livre comércio. Este precioso corolário escapou à apreciação de Bastiat.

*Agradecimentos a Gabriel Felippi pela revisão

O pai do Anarquismo defendia a propriedade privada